9 de fevereiro de 2009

A política tem opção sexual?

Visibilidade de políticos homossexuais não se reflecte em Portugal, onde a tradição cultural não admite o escrutínio da vida particular dos indivíduos que são candidatos a cargos públicos
Ontem
ELMANO MADAIL

A orientação sexual dos actores políticos, designadamente homossexuais, tem tido uma visibilidade inusitada nos média. Seja pela nomeação para cargos de destaque, como ocorreu nos EUA e na Islândia, seja pela estreia recente do filme "Milk".
Realizado por Gus Van Sant, biografa Harvey Milk, o primeiro político assumidamente gay eleito nos EUA. Na circunstância, para a Câmara Municipal de San Francisco, em 1977. A Presidência actual das edilidades de Paris e de Berlim estão entregues, também, a homens que tornaram pública a sua condição gay. Mas, se no estrangeiro os políticos começam a "sair do armário" (ver caixa), em Portugal a realidade é outra: nunca houve, nem no Governo nem na Assembleia da República, e tampouco à escala autárquica, um político cuja homossexualidade tenha sido declarada.
E, todavia, a questão não parece irrelevante. Bem pelo contrário, sempre que foi publicamente abordada, terá sido pela via da infâmia, tentando projectar uma imagem negativa sobre o visado. Assim, ocorre perguntar: por que é que a orientação sexual de cada qual é ainda um anátema no universo político nacional? Por que é que os políticos portugueses homossexuais, a existirem, não se assumem? E, afinal, seria desejável que o fizessem?
Heteronormatividade do poder
Os analistas dos fenómenos sociais indicam vários factores passíveis de explicar a vigência de certa "heteronormatividade do poder" em Portugal. Desde logo, a diferença de contexto, conforme observa José Manuel Leite Viegas, professor de Sociologia do ISCTE: "A cultura política norte-americana é distinta da europeia. Aqui, há uma ética partilhada entre políticos e jornalistas, por exemplo, em que a vida privada não constitui interesse público. A não ser, talvez, ressalva, em questões de carácter, que servirão para aferir da sua coerência, ao comparar a conduta com o discurso", diz. "Mas, nos EUA, é encarado como legítimo que a vida privada dos indivíduos seja tomada como factor de análise dos candidatos a cargos públicos".
Esse escrutínio é prenhe de exemplos, avultando o caso do governador de New Jersey, James McGreevey. Casado e pai de duas crianças, resignou em Novembro de 2004, revelando, na altura, a sua homossexualidade. "Se a mantivesse secreta", justificou, deixaria o gabinete de governador "vulnerável a rumores, falsas alegações e ameaças". Mais feliz foi John Berry, nomeado para a chefia do Gabinete de Recursos Humanos pelo presidente dos EUA, Barack Obama, em meados do mês passado. Homossexual assumido, a escolha de Berry foi vista como um gesto simbólico, a recusa da discriminação laboral em função das opções sexuais.
Entre a nomeação de Berry e a desventura de Milk - assassinado em 1978 - passaram 30 anos. Hiato que modificou mentalidades nos EUA, no Mundo e também em Portugal. Segundo um estudo de Viegas, "numa década (1990-99), a discriminação registou diminuição significativa", garante. Mas não tanto quanto o desejável, segundo Isabel Estrada, professora de Ciência Política. "Porque a sociedade portuguesa é ainda muito ligada à Igreja Católica, cuja hierarquia encara a homossexualidade, de forma muito clara, como doença. Um desvio", sublinha a docente da Universidade do Minho.
Sendo o sistema político-partidário nacional reflexo do país, partilha das suas virtudes e defeitos. Como a pequenez e o preconceito, decorrentes, segundo Miguel Vale de Almeida, antropólogo ligado à defesa dos direitos dos homossexuais, da falta de valores de cidadania: "O percurso clássico das elites passa pelo ingresso nos aparelhos partidários e pela construção da carreira a partir de lá, sem activismo associativo anterior", diz. Por isso, aquele docente do ISCTE afirma que, "embora haja muitos homossexuais na vida política nacional, não assumem".
Diz Vale de Almeida que "padecem de 'homofobia interiorizada', isto é, eles próprios acham que há algo de errado com essa condição". E presumem que a maioria da população, e putativo eleitorado, também o entenda assim.
Resulta daqui, dessa valoração negativa, não só o secretismo, mas também, no âmbito de combates políticos, o recurso à insinuação da homossexualidade do adversário para denegrir a sua imagem. Ficaram tristemente célebres as alegações de um histórico do PS, Carlos Candal, sobre a existência de um "lóbi gay" no país, e, mais recentemente, no contexto da campanha eleitoral para as legislativas de 2005, o que foi lido como insinuações do então líder do PSD, Santana Lopes, dirigidas ao oponente José Sócrates, candidato do PS à chefia do Governo.
"O uso negativo da homossexualidade pretende fragilizar o outro, e torna-se mais grave se é usado por um político", diz Estrada. "Porque esses têm consciência do preconceito, instrumentalizam-no para ter impacto na opinião pública. Levanta-se a suspeição da tendência sexual do outro porque se sabe que, no fundo, vai gerar efeitos numa população que ainda é sensível à questão. Na Islândia, presumo que não teria consequências", afirma, referindo-se à nomeação de Johanna Sigurdardottir, lésbica assumida, para a chefia do Governo interino daquele país na bancarrota.
Intimidade não escrutinável
Na verdade, em Portugal também não teve. O eleitorado ignorou as insinuações e deu a Sócrates a primeira maioria absoluta do PS, como realça Vale de Almeida: "O efeito esperado pelos que usam argumentos homofóbicos é menor do que julgam; pelo contrário, até será pernicioso para os fomentadores desse género de discurso", garante. Afinal, as mentalidades mudam. Mas não tanto que permita aos políticos portugueses "sair do armário", e os analistas também não o prevêem a breve trecho. Por um lado, salienta Vale de Almeida, porque "os partidos não se declaravam, até há pouco, contrários à desigualdade baseada na orientação sexual"; por outro, porque "há o receio dos custos políticos, quiçá familiares e profissionais, que teria", salienta Isabel Estrada, embora lhe pareça que "o primeiro que o fizer ganhará com isso, por ser uma pedrada no charco".
Viegas prevê, todavia, uma agitação das águas: "Na medida em que a censura social está muito mais atenuada, é natural que as pessoas se assumam, e que essa atitude venha a penetrar, depois, o universo político", conjectura. Este não será, porém, o momento. "Quando a sociedade se encontra num patamar em que tem de lidar com questões básicas, como o emprego, por exemplo, não há disposição intelectual para atentar a causas como a homossexualidade", alerta Estrada. Assim, num país em crise ocorre, também, a deflação da visibilidade gay.
Mas há ainda outro aspecto, mais estruturante, que obsta à assunção dos actores políticos homossexuais - a ética. "Mesmo que haja maior abertura da sociedade, muitos políticos não querem, sequer, abrir a porta para que a sua orientação sexual se torne factor de análise do seu desempenho enquanto políticos", diz Viegas. "A política tem de ser o escrutínio das capacidades do indivíduo, e é tudo. A esfera íntima não é escrutinável".
in JN

1 comentário:

Anónimo disse...

Aproveito este espaço para levantar uma questão. Os homossexuais continuam a ser inibidos nos dias de hoje de doar sangue. São ainda considerados um grupo de risco. Nesse sentido existe uma petição online com a tentativa de mudar essa medida:

http://www.peticao.com.pt/ver-assinaturas.html?peticao=324

Se estiverem contra essa medida, assinem!